sábado, 30 de maio de 2015

Quente e frio

Conversa de algibeira num qualquer elevador. Desbloqueador de conversas para uma circunstância embaraçosa, a ultrapassar esse silêncio desconcertante de um espaço exíguo. Hoje está frio. Hoje está muito calor. Conversas ocas, mas necessárias para ali, naquele momento. Mas o calor e o frio merecem um prestígio maior. No calor reside a energia dos átomos. No frio a sonolência das moléculas. Quente é a alma do poeta, do pintor. Quente é um coração de amor. Como um raio cósmico, o calor do amor atrai e envolve dois, dois seres. Dois é expressão de amor. É condição sinue quo non da paixão. Caloroso e eterno é ainda mais o amor transbordante de um pai, de uma mãe. Um propósito de vida intenso, visceral, que emana uma chama imensa sem cessar. Inexpugnável como o calor do sol. Perene. Sereno mas alerta. Um filho alerta-nos os sentidos e aquece-nos a alma. O frio. O frio não existe. Representa em si apenas a negação do oposto. Frio absoluto aos -273 graus Celsius. A temperatura de mínima energia possível. Longe, muito longe do humanamente suportável. Acima, bem mais acima, definimos o árbitro mais universal entre os dois adjetivos. Zero graus Celsius. A barreira das temperaturas negativas, a libertação da água das amarras do gelo. Por cá, endeusamos o calor. Mexemo-nos com mais vigor e alegria quando o Sol nos castiga a epiderme. Rumamos religiosamente à praia no trimestre de verão. Em Marrocos, na extremidade norte do Sahara, encontrei um dos ambientes mais quentes que me recordo. Um calor asfixiante, seco e sonolento. Um forno gigante onde cabem cidades. Frio. Sinto no frio. Na cultura do frio, uma repulsa coletiva. Uma expressão de indiferença inusitada. Também a tinha. Perdi-a em 2002. Após um ano imerso no frio, na terra do frio. Na Finlândia. Viver e sentir as quatro estações, dia após dia, grau após grau, realça o respeito pelo frio como condição de vida. O génio e engenho do homem em viver e elevar-se no frio, em torno de temperaturas que caem tão fundo como os -31ºC. Não ter frio, rodeado de frio. Viver para a sauna. Moldar espaços à temperatura de conforto. Desfrutar da atmosfera exterior tranquila dos dias nevados, numa obsessão pelo exterior, em todo o ano. Na montanha também se convive e desfruta do frio. Nele se lê a altitude, no frio se revela a personalidade da montanha. Neves eternas. Gelos eternos. Viajar num quebra-gelos foi um expoente máximo dos mínimos. A ousadia da proa a desbravar placas maciças de gelo. Um mar de gelo imenso. Quente ou frio, é uma das brincadeiras favoritas do Tiago.




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