sábado, 13 de junho de 2015

Sinónimos e antónimos

No léxico reside um dos maiores desafios dos falantes de uma língua. Pelo léxico se constrói a riqueza da comunicação. Com o léxico se consubstancia a felicidade da língua. A felicidade de traduzir em palavras as mais íntimas emoções. A alegria de descrever com rigor a correta sensação. O alívio de transmitir ao recetor a perceção dos nossos sentidos. No dia a dia a língua vive apertada. Reduz-se ao essencial, às mais básicas palavras, simples sem alegorias, ornamentos ou erudição reboscada. O dia a dia exige prontidão, perceção espontânea, clareza e tiro certeiro de entendimento. Não há espaço para léxico clássico, não corrente, de interpretações dúbias e bloqueadoras. Na poesia, no romance, nas artes sim. Aventura-se o texto por caminhos mais ousados. Toma a coragem das palavras caras, da expressão luxuriante, emocionante e corajosa. No dicionário, essa prima invenção biblíca da língua, reúne-se de forma ordenada o léxico. As palavras que dão corpo à língua. A chave da sua leitura. A coleção perfeita de todos os sinónimos, numa teia infinita de afinidades e ligações entre as partes. Um sinónimo é um farol para a expressão ótima. O caminho confortável para um texto mais rico, mais analógico, menos digital. Mais humano, menos técnico. Dar vida ao vocabulário vernacular, legado histórico dos nossos falantes. Sobretudo revigorar a alma da emoção. Um sinónimo é isso. É o irmão da palavra. A cumplicidade do significado na unicidade de uma identidade própria, familiar, mas diferente, com outra leitura. Em oposição de fase um antónimo. O revés da mensagem. A necessidade de exprimir o caminho contrário. O oposto. Na certeza que este é exatamente a negação do outro. A complexidade da negação de si desbloqueada pelo alívio de encontro de um antónimo. A alegria de descobrir uma palavra só, que retire o não, que eleve a expressão ao significado desejado, sem referência cruzada ao vocábulo que lhe deu origem. Não alimentar expetativas, pela possível queda do não. Pela incerteza do canal o omitir, conduzindo a mensagem ao oposto não desejado. O antónimo desbloqueia a língua, traduz-lhes significados cruzados. Reforça a sua estrutura. A minha pátria é a minha língua, diz Pessoa. A bagagem de sinónimos e antónimos o cartão de cidadão da minha alma, digo eu.


sexta-feira, 12 de junho de 2015

Proa e popa

País de marinheiros. Portugal tem orgulho quinhentista na epopeia marítima. No século XVI tivemos um papel soberano na descoberta e afirmação de rotas oceânicas, estabelecendo um novo trânsito comercial de pessoas, animais, plantas e bens. Durante largas décadas fomos os maiores. Uma coragem que robusteceu a nossa economia, trouxe poder à monarquia e nos colocou no expoente máximo de desenvolvimento. Foi tão marcante que ainda hoje vivemos dessa memória distante. Não temos mais tradição marítima. Nem comercial, nem turística, nem humana. Vivemos de costas voltadas para o mar. Os portos nacionais com significativo tráfego e comércio é certo, são marginais na economia mundial. O Porto de Leixões, que o Tiago trata por tu e admira, em 2014 acolheu só sessenta e cinco mil passageiros. Não tenho curso de vela, nem de marinheiro, nem de patrão local. Mas gostava. Sinto que tenho essa obrigação. De conhecer mais o mar, de lhe entender os humores, de me inebriar na sua imensidão. Tenho uma íntima curiosidade pela breu profundo do céu em pleno alto mar. Distante de todo e qualquer foco de luz, a abódada celeste terá o seu máximo esplendor aí. Nesse alto mar inóspito, assustador, mas ao mesmo tempo, creio, arrebatador. Proa e popa, duas referências de rumo para homens do mar. Proa lá à frente, onde o casco da embarcação rasga as águas. Popa, lá atrás, onde o remoínho das águas escreve o rasto do percurso. Um binário que, para mim, criatura terrestre me confunde e sempre traz incerteza na afirmação de qual é qual. Repetir, proa é à frente, popa é atrás, proa é à frente, popa é atrás, proa é à frente, popa é atrás, proa é à frente, popa é atrás, proa é à frente, popa é atrás. Recuando novamente quinhentos anos, encontra-se Luís Vaz de Camões (1524 –1580). Nobre poeta Português que, inspirado pelas grandes obras da antiguidade clássida, redige n' Os Lusíadas, a estória na nossa história. Tecnicamente, canta as glórias e os infortúnios deste povo. Narra a histórica jornada de Vasco da Gama na descoberta do caminho marítimo para o Índico. Com dez cantos, a obra divide-se em cinco partes: proposição, invocação, dedicatória, narrativa e epílogo. Nos grandes navios de passageiros passo mais tempo na popa. Cá atrás. No aconchego dos ventos, a mirar o percurso percorrido. Na nostalgia do porto abandonado, na confiança do ritmo conquistado. Na popa passo sempre. Na abordagem do mar a conquistar, na admiração do rumo certo, num cenário incógnito sem referências, apenas confiante na certeza do destino.





quinta-feira, 11 de junho de 2015

Ficção e realidade

A fronteira dos nossos sentidos. Talvez isso seja a realidade. Uma construção da mente do daquilo que a rodeia. A leitura tridimensional do espaço. A perceção do que vemos, sentimos, cheiramos, provamos, ouvimos ou sentimos. A realidade de mim está em mim. A de ti parte de ti. A realidade veste-se de tempo. Da cronologia em cascata de si. De uma sucessão de eventos cumulativos, sucessivos, com precedência no instante anterior. A realidade que nos envolve contempla evidências do passado. Da plenitude da realidade anterior, quer ela tenha sido próxima, como no minuto seguinte ao nascimento, ou muito distante, nos fósseis petrificados com testemunhos milenares evidentes. Na ficção tenta o ser humano recriar realidades imaginadas. Libertar as amarras da mente, infringir a certeza dos sentidos e construir um quadro novo, ficcionado. Na ficção reside a vanguarda mais ousada da criação. A vontade ousada de assemblar um universo novo. Ou será a ficção um braço esticado na esperança de agarrar uma realidade nova muito próxima? Na versão mais recente da série Cosmos, interpretada agora pelo brilhante Neil deGrasse Tyson, os episódios sucedem-se com uma mistura harmoniosa de realidade e ficção. A nave do Neil é a ficção que nos transporta no tempo e no espaço do universo. Pela sua janela apresentam-se as realidades conhecidas deste e dos vizinhos mundos. Na astronomia, a realidade estende-se um pouco mais para além dos nossos sentidos. Os telescópios, radiotelescópios e super computadores trazem-nos evidências de realidades indeléveis para estes 5 sentidos. Na investigação de topo atinge-se ainda um paradigma de realidade mais ousado. Consegue-se prever, por coerência da ciência, evidências não detetáveis até então. O bosão de Higgs é disso exemplo. Detetado em 2012 pelo acelerador de partículas, andou praticamente 50 anos na esfera da ficção, da mera predicção de Peter Higgs, um físico britânico. Encontrada a tecnologia capaz, o bosão ficcionado é tornou-se realidade nossa. A realidade não existe. Existe é em cada um de nós a ficção da realidade.


quarta-feira, 10 de junho de 2015

Portugal e Espanha

De Camões e das Comunidades Portuguesas. Hoje é dia de Portugal. Feriado nacional. A celebração da república que enaltece os mais altos símbolos, orgulho e identidade da nação. Neste feriado, como tantos outros, o motivo não traz em si sentido às horas de sol. São agora mais uma válvula de escape da rotina. A bolsa de ar familiar para comungar em grupo a exceção do dia. Em Portugal reside o orgulho. Orgulho num cabaz de valores, sensações e recordações que alegremente se partilha com quem não conhece. Posso mudar de ideias, mas creio que enquanto houver paz, brandos costumes, boa comida, bom vinho, incrível território e recursos, não trocaremos Portugal por nada. Espanha, vizinha de nós, é o complemento daquilo que somos. Agrega património único do seu passado. Vibra na celebração da vida a um ritmo que nos envergonha. Portugal e Espanha juntos são a Ibéria Península. A jangada de pedra de Saramago. O extremo estranho da Europa, cá por baixo, a roçar África. Portugal não vive sem a Espanha. Espanha esquece-se de nós. De um lado ou de outro, é bom estar, é bom celebrar. Em Portugal o que somos. Em Espanha o que poderíamos ser.



terça-feira, 9 de junho de 2015

Régua e esquadro

Uma linha reta, a previsibilidade do destino ao longo do caminho mais curto à sua origem. No traço militarmente aprumado reside o conforto da simplicidade, a excelência da execução, a tranquilidade das formas. A régua auxilia a mão trémula a não vacilar, a garantir a linearidade da linha, a manter a fiabilidade do prumo, independentemente do seu autor. O esquadro complementa a régua, irradia perpendiculares e autoriza a execução de paralelepípedos perfeitos. Pelo esquadro dobram-se angulos retos perfeitos, sem arestas, sem borrões, na continuidade a noventa graus do traço da régua. O manuseio de ambos requer motricidade fina, concentração. A mão esquerda alinha a régua. Torna-a solidária com o suporte de registo. Dá ordem do ângulo para o caminho desejado. Corrige eventual erro de paralaxe. Prensa firmemente o seu corpo, deixando livre a aresta que dará origem à linha. A mão direita segura o marcador. Pica o ponto inicial e desliza na aresta da régua, libertando assim a projetada linha reta. Sou destro. Acredito que um canhoto processe o mesmo processo em ordem invertida dos membros superiores. Para um destro, a mão direita é ainda o manobrador do esquadro. O leme da sua mobilidade na régua. A sinfonia de ângulos retos no seu conjunto. Recordo-me do uso intensivo  da régua e esquadro nas aulas de geometria descritiva. Desenhar mil e uma perspetivas com ambos. Tirando a bricolage, hoje quase não uso ambos. O Tiago também ainda não. Deve estar para breve, pelo menos a régua. O esquadro será lá mais à frente. Em que ano se introduzirá a régua e o esquadro? 3º ano?


segunda-feira, 8 de junho de 2015

Grave e agudo

Som. Uma coleção de graves e agudos tons. Da grossa e vibrante baixa frequência de um grave até à estridente e arrepiante alta frequência de um agudo. As ondas de pressão do som descodificam-se no ouvido e transformam-se em mensagem, à velocidade da luz. Entrincheirado na gama do audível, o ouvido humano é um dos recetores de emoções mais fortes que possuímos. Pela expressão do som falamos, comunicamos, alertamos, cantamos, gritamos, sussurramos, interligamo-nos. Na música, o grave, em pano de fundo proporciona o alicerce da melodia que se lhe sobrepõe. Dá ritmo, corpo, intensidade e robustez ao conjunto. Nos graves sinto o pulsar da vida, do bater do coração. Talvez por isso me reconforte tanto. Talvez por isso nos prenda tanto. O agudo escreve, a tinta da china, a narrativa da melodia. Realça a intensidade das emoções. Paralisa o espaço e reclama para si a atenção em exclusivo. No diálogo com os filhos, sons graves e agudos, deliberadamente bem destacados, são um catalisador incrível da relação. Ler a admiração de um bebé em reação a um clamor grave do leão ou o sorriso maroto, fruto da aprovação do comentário da mamã lego, são momentos mágicos. No silêncio, plenitude da ausência do grave e do agudo, respira-se em profundidade. Tranquiliza-se a mente e o sistema nervoso. Tanto o André como a Rita choram em dó menor. Num agudo estridente que estilhaça a paciência. Sem dó nem piedade, até à tranquilidade do conforto do colo ou do cumprimento da necessidade reclamada. Em tom grave canta o Tiago a música da liberdade. Decorados os versos principais sem dificuldade, é um espanto ouvir, com voz grave esforçada o "Grândola vila moreeena...". Na música, graves e agudos entrelaçados, harmoniosamente agregados, transportam-nos para outro mundo. Na casa da música, agora nossa vizinha há dois meses, destaca-se e elevam-se os graves e os agudos ao seu maior prestígio. Na universalidade das sonoridades intercontinentais, há aqui no Porto um expoente máximo à cultura da música. Também em abril de dois mil e quinze esta casa da música celebrou dez anos. A primeira década onde recebeu 4.538.180 visitantes e realizou 2.358 concertos. Arrebatador ainda é o espólio de instrumentos. Mais de dois mil no total. Pianos e cravos, violinos e contrabaixos, harpas e clarinetes, mas o naipe mais representado é o das percussões, que inclui um gamelão indonésio para uso comunitário.



domingo, 7 de junho de 2015

Sensibilidade e bom senso

Emoção e razão trazem em si a vontade de comandar o destino. Tomar o pulso das decisões e convencer por si o ímpeto de avançar. Alinhadas combinam o prazer da certeza, de combinar o bem estar do correto, do melhor, da única solução possível. Em conflito, emoção e razão, corroem a psique, num curto circuito danado de resolver. Pelo coração, soltam-se os calores do momento, atiça-se a energia da alma, abra-se a janela do pensamento. Pelo cérebro, impera o algoritmo da conduta, da causa consequência subtraída, da ponderação científica da decisão, da análise custo benefício, de tantas outras variáveis que mais não são do que lixo, se a emoção prevalecer. Sensibilidade e bom senso personificam a emoção e a razão. Romance publicado em 1811, por Jane Austen, para além das história que desconheço, realça um título com um par marcante que perdurou décadas e chega até nós, praticamente intacto. Sensibilidade veste-se no feminino. Diz-se que os homens não têm sensibilidade. Que se cegam com a testosterona. Culturalmente concordo e subscrevo. Na essência do ser humano discordo. Todos somos humanos, todos vibramos e fazemos vibrar outros, a uma determinada frequência. Bom senso é valor intangível de elevado gabarito. Garantir a hombridade do contexto, tecer um filigrana milimétrico de vontades e expressões individuais sobriamente conjugadas em prol do desejo coletivo. Bom senso sim por favor. Banhos de bom senso para as nossas vidas. Se à mistura se puder condimentar com o sal da sensibilidade, brilhante. Menos pruridos haverá.


sábado, 6 de junho de 2015

Chave e fechadura

Proteção, conforto e agilidade. Um par de chaves e respetiva fechadura representam emoções familiares de intimidade. De fronteira entre o nosso e o dos outros. Na fechadura deposita-se a confiança da robustez, da fidelidade de apenas responder ao ímpeto da chave que lhe está associada. Da mais simples, com grampo de metal a rodar e prender na extremidade fixa, à mais sofisticada, com combinação de códigos, proteções redundantes, ou tripla tranca. A chave cúmplice da fechadura, agrega o visto de entrada ou saída dali, para lá do espaço bloqueado pela soberana fechadura. Na chave reside também a metáfora da resposta ao desejado. A chave de um problema, a chave do euromilhões, a chave de acesso à conta bancária, a chave de acesso aqui a esta máquina. Muda-se de casa, mudam-se as fechaduras e as chaves. Um reset aos acessos. A certeza de garantir assim o exclusivo aos de nós, impedindo todos os dos outros até então, de entrar. As velhas fechaduras, ou melhor, os velhos canhões são assim remetidos para a obsolescência de si. Guardam-se ainda assim, na esperança de um dia, poderem ser reciclados numa outra fronteira, noutro contexto, sem perigo de contágio dos acessos indesejados da sua história anterior. Chaves e fechaduras representam amor. Um cadeado personifica a união, o desejo e a vontade de unir dois seres. Em várias cidades surgiu o hábito de prender cadeados em locais populares. Abrir o cadeado, escolher um local, fechá-lo eternamente na estrutura e atirar a chave para bem longe. Garantir assim que a irreversibilidade da ação personifique idêntica vontade da paixão. A ponte das artes em Paris foi estes dias notícia pelos "cadeados do amor". A Câmara Municipal ordenou a retirada de toneladas de cadeados aí deixados, numa ação em prol da segurança pública. Sugere selfies em substituição do ritual anterior. Que desilusão para todas as esperanças de perenidade ali depositadas. Que racionalidade fria a desprezar o calor de tantas relações. Oxalá o destino final funda o metal de todos os cadeados e transborde amor para os autores da sua fxação.


sexta-feira, 5 de junho de 2015

Mais e menos

Somar e subtrair. Alterar a realidade criando um novo estado. Mais do que falta. Menos do que sobra. Mais tempo, mais tranquilidade, mais ordem, mais leituras, mais fotos, mais natureza. Menos unhas para cortar (são 100 em cada ronda), menos papas pelo chão, menos choro, menos ecrãs, menos sono. Mais e menos é a diferença de potencial que permite a eletricidade. Entre o pólo positivo e o pólo negativo flui a corrente desejada. No mundo destas nossas crianças há imensos brinquedos. De todas as cores, feitios e comportamentos. Os mais rebeldes emanam sons, piscam-se e contaminam o meio ambiente. Essa personalidade conquistam-na com os mais e menos das pilhas. Das várias pilhas que se gastam e é necessário trocar de quando em vez. "Mais" foi uma das primeiras expressões do Tiago, na aquisição da língua. Uma das primeiras palavras onde viu utilidade prática. Mais, mais comida, mais água. Claro, assertivo, eficaz. No menos, no imediato, leio o frio. O descer da temperatura para lá do zero. O cavalgar dos graus, pelo reino da neve e do gelo adentro. Menos trinta e um graus foi o extremo mais baixo que vivi. Um ambiente transcendente que desafia a nossa fisionomia. O menos dá-nos neve. Um contexto sazonal de fantasia. No silêncio amorfo do exterior. Na adrenalina das pistas. Menos sono, menos ranho, menos imprevistos. Mais saúde, mais energia, mais de nós.


quinta-feira, 4 de junho de 2015

Tradição e modernidade

Uma máquina do tempo. A tradição transporta pedaços do passado para o presente. A modernidade, reflexo do pensamento contemporâneo, ambiciona vislumbrar o futuro. Antever hoje a tendência do amanhã. Na tradição repercute-se o saber cumulativo de gerações, o diamante lapidado da experiência, a sapiência e mestria de uma cultura. O amadurecimento do tempo. Testemunhar legado para as gerações vindouras. Nas tradições reúne-se a mais genuína expressão coletiva de um povo. Pelas tradições realça-se a originalidade daquele sítio, até aquele momento. Nunca a Portugalidade esteve tão na moda. Nunca antes o nosso artesanato foi tão cobiçado pelos outros. A tradição reinventou-se. Há inovação na tradição. Uma antítese na expressão em si. Mas redesenhar objetos, adaptar festividades, reanimar "linces ibéricos" quase extintos é inovação. É cumprir a mais básica lei de mercado. Obedecer a uma necessidade vital do mercado. Só há tradições se houver público, artesãos e utilidade. Os naprons de corchet a forrar os troncos das árvores em Santa Maria da Feira, os barcos rabelo a motor a dar rio aos turistas, as encenadas feiras medievais a recriar o mais épico campo comunitário, a gastronomia tradicional que nunca cansa. Nas carnes, no bacalhau, nos doces. Os conventuais sobretudo. Que explosão de prazer em todos e cada uma dessas iguarias de culinária dos nossos ancestrais artesãos da gula. Na modernidade impera também a tradição. A expressão maximizada do ser humano, do seu papel no mundo vivido no presente. Modernidade é disrupção. É lutar arduamente para afirmar algo novo em contraponto com o status quo. Os museus de arte contemporânea desafiam-se repetidamente. Apresentam-se provocadores a cada nova instalação. Insultam os seus visitantes com a estranha estupidez arquitetada pelo autor contemporâneo. Sempre que posso não perco uma exposição. Mais que tudo porque me ativa o pensamento. A leitura do mundo por um prisma raramente imaginado antes. A oportunidade de usufruir de uma outra perspetiva. Na música a modernidade energia. Reinventa-se e traz sonoridades novas, orquestradas por arranjos inéditos. A tradição já foi modernidade. A modernidade bebe tradição. 


quarta-feira, 3 de junho de 2015

Branco e Tinto

Vinho. Curiosa a alteração da perceção que o par nos dá. Preto e Branco, por esta ordem exata, antevê fotografia. No limite albergava contexto das raças do Apartheid. O mesmo vocábulo, branco, emparelhado com tinto evapora-se no álcool. Aqui branco é abuso de linguagem. O vinho branco não o é. Verde, transparente, translúcido, incolor, dourado, caramelo, esmeralda, funcho, tudo menos branco. Porquê branco então? Uma simplificação de linguagem, ou melhor ainda, uma catacrese. Uma reboscada figura de estilo que, por falta de um termo específico para designar um conceito, toma-se outro "emprestado". Assim, passamos a empregar algumas palavras fora de seu sentido original. Branco e tinto seja então sinónimo do vinho. Do de mesa. O que acompanha a carne e o peixe. No vinho ouve-se o pulsar da terra, o sussurro das regiões, a alma dos seus artesãos. Admiro com veneração a mestria dos enólogos. A precisão do seu olfato. O talento das suas decisões, dia após dia, cumulativamente ao longo do ano da poda, passando pela safra até à alquimia final do néctar pronto a consumir. Maduro tinto é para mim o Vinho. O aglomerado maior de sensações. No tinto, cor de sangue, exalta-se o calor do solo, a agrura do tempo (meteorologia), a paciência do tempo (cronologia). O tempo faz o vinho, eleva-lhe a alma. Um bom tinto precisa de tempo para crescer, para se tornar maior. Para sublinhar os seus aromas terciários. Esses que lhe conferem o estatuto de "Ah, este é bom!".Tinto do Douro ou do Alentejo. Do Dão, da Bairrada ou da Estremadura. Taninos, madeira, especiarias, frutos vermelhos, corpo. Os brancos também enchem a alma. Da frescura dos verdes, à elegância dos maduros. Nos verdes, o popular alvarinho é unânime. Agradável, ligeiro e doce. Bebe-se sem cerimónias. O arinto ou o loreiro enchem-me também as medidas. Nos maduros aguçam-me as papilas o fernão pires ou o moscatel. Sim, a casta moscatel num branco de mesa é incrível. Pelo meio e, tal como em tantos outros pares há um misto. O moscatel. Singular, ousado e contemporâneo. Um vinho branco feito com uvas tintas. Perfeito a acompanhar sushi. Branco, tinto ou moscatel, o vinho é um dos prazeres desta vida adulta. Uma recompensa elogiosa no esforço de um pai



terça-feira, 2 de junho de 2015

Pedro e Inês

Fogo que arde sem se ver. Uma estória de amor real, da nossa História, com todos os superlativos. A paixão arrebatadora de um Rei por uma ama, numa aliança proibida pela época. Numa altura em que se lutava pela reconquista da nação aos Árabes, a trágica morte de Inês de Castro atiçou ainda mais o desejo ardente de D. Pedro I. Um enredo tal, com amor mas também ódio, com inveja mas cumplicidade, com angústia mas esperança. Mas vamos por partes. Pedro nasceu a 08/04/1320. Os pais, Afonso IV e Beatriz, qual preocupação com a mensalidade da creche, queriam era arranjar-lhe rapidamente uma mulher para casar. Primeira tentativa, Branca de Castela. Pedro negou, pois a senhora era muito doente. Segunda tentativa, Constança de Castela. Pedido aceite. Boda com pompa e circunstância. Estavam reunidas as condições para procriar e garantir a sucessão oficial. Aos vinte anos, em 1340 chega a Portugal a comitiva de Constança, rodeada de pagens, aias, parentes e criados. Inês é uma dessas aias. Começa aqui a nossa estória de amor. Proibido já se sabe. O casamento anunciado prossegue e Pedro casa-se com a Constança. Pedro quebra contudo, claro está, a fidelidade do casamento e, mantém encontros regulares com a Inês. Um romance quente, afagado pelo povo, repudiado pelos pais, autores da encomenda do casamento. Por soberania da autoridade do trono, exilam Inês no convento de Santa Clara, em Coimbra, numa tentativa de os afastar. Do casamento administrativo Pedro obriga-se a ter filhos. Resultam três. Luís, Maria, e Fernando. Com o nascimento do Fernando, Constança não resiste à violência do parto e morre. Pedro viúvo respira. Inês está agora mais próxima que nunca. Têm quatro filhos. Afonso (assassinado em criança), Beatriz, João e Dinis. Os membros da corte, feridos no orgulho, alimentam uma espiral de conspiração em torno de Inês e da sua família, para fazer tudo por tudo para a impedir Inês da integrar a monarquia. Havia um herdeiro oficial, o Fernando. Havia em paralelo três bastardos de Inês. O Rei temia que os bastardos pudessem assassinar o Fernando e assim ascenderem ao torno. Decide matar Inês. Durante um dia de caça de Pedro, em janeiro de 1355. Três nobres insolentes, Pêro, Diogo e Álvaro apunhalam Inês a sangue frio, sem dó nem piedade. Bela merda. Pedro a arder de dor, desespero, raiva e angústia declara guerra ao pai. Assaltou castelos, matou desmesuradamente. Ao fim de alguns meses, após negociações, assina-se tratado de paz. Em 1357 morre o pai e Pedro é entronado Rei de Portugal. Imediatamente ordena a busca dos assassinos de Inês. Diogo fugiu para França. Pêro e Álvaro foram executados. Retiraram-lhes os corações. Um pelo peito, o outro pelas costas. Queimaram os seus corpos, enquanto Pedro se banqueteava. Dois anos mais tarde, Pedro mandou desenterrar Inês, sentou-a no trono e, perante o povo, coroou-a Rainha de Portugal. Obrigou todos os nobres presentes a beijarem a mão do cadáver. Ordena a construção de dois túmulos, para ambos, virados um para o outro, para a eternidade, no Mosteiro de Alcobaça.








As filhas do Mondego, a morte escura
Longo tempo chorando memoraram
E por memória eterna em fonte pura
As Lágrimas choradas transformaram
O nome lhe puseram que ainda dura
Dos amores de Inês que ali passaram
Vede que fresca fonte rega as flores
Que as Lágrimas são água e o nome amores

Os Lusíadas, canto III



segunda-feira, 1 de junho de 2015

Criança e Adulto

Dia mundial da criança. Um sublinhado mediático da infância da humanidade. Da esperança renascida de cada um de nós. Da universalidade da vida na inocência de um ser. Uma criança é um mundo. Um oásis de futuro, uma ilha de paz. A criança induz energia renovada no amanhã, no desejo de construir o cabaz pleno de felicidade. Uma criança merece tudo. Procuro nesse mundo a riqueza da imaginação. Beber a inspiração de quem se constrói a cada novo dia. Na fantasia de um diálogo, recolher indícios da inocência de um raciocínio, novo, sem vícios, sem barreiras, livre, ousado, renovado, fresco. Como é bom falar com uma criança. Criar uma ponte entre estes dois mundos. O meu e o da criança. Transportar-me para essa infância. Reviver a minha. Ter o privilégio da Sua atenção. Que nobre retribuição. O olhar atento, a curiosidade contínua, um sorriso, a expressão genuína. Revigorantes elixires de prazer, de gratificação do mundo que nos rodeia. Ali sei que é merecido o esforço. Naquele momento sei que o universo me olha, me ama, me quer. Como é bom uma criança, duas crianças, três crianças, tantas crianças por perto. Ode à criança, ode à mais real expressão do amor. Uma criança, um sorriso. Adultos? Adultos somos nós. Não quero. Ser pai é ser criança. É reencontrar o desejo de crescer, de aprender. Ler os dias num novo alfabeto. Traduzir os valores na simplicidade do exemplo. Contornar a preguiça do cansaço na alegria do exemplo. O primeiro dia da criança da Rita e do André. O quarto do Tiago.